terça-feira, 9 de outubro de 2018

Direito Penal e a Teoria do Inimigo



Direito Penal e a Teoria do Inimigo

O surgimento do Direito Penal foi inspirado na organização social antes mesmo da escrita. Os seres humanos sempre buscaram um arranjo social, e isso faz parte do instinto natural do homem. Com o passar do tempo, muitas novidades no Direito Penal surgiram; porém, algumas permaneceram “iguais”, e outras evoluíram, mas mantiveram sua essência.

Um exemplo disso é o próprio crime de violência. Em tempos primórdios, o homem sempre teve necessidade de defesa, e fazia isso seguindo somente seu instinto animal, ou seja, retribuía o mal que alguém lhe fizera de maneira desproporcional. Não havia regras, não havia lei. O único objetivo do homem era a proteção do seu ambiente e a busca por seu alimento; se algo ameaçasse esses bens, havia um crime, o que na época não era assim chamado.

O Direito Penal, então, surgiu para organizar e proporcionalizar essas “defesas”. O homem passou a entender que precisa viver em coletividade e que os bens tutelados pelas leis não são somente os seus, e, sim, do corpo social, fazendo com que passasse a obedecer às regras de uma sociedade meramente organizada.

Acontece que essa forma de organização social continuava a ser desproporcional e talvez injusta para alguns membros. Quem julgava os crimes acometidos eram os mais fortes e robustos dessa sociedade, e aqueles mais esmirrados, que teria desobedecido alguma ordem, passavam a ser escravizados, servindo de prisioneiro até o fim de sua vida.

Com o passar dos anos, acreditava-se que o Direito Penal e a organização da sociedade era prestada e mantida totalmente pelo divino, através de rituais religiosos.


Para eles, todo e qualquer acontecimento estava baseado na vontade dos deuses; era o divino que mantinha a sociedade de forma que, se alguém cometesse algum delito, os deuses, através do homem, castigavam aquele indivíduo, ou seja, mesmo que a sansão tenha sido totalmente desproporcional, como arrancar membros, enforcar ou afogar, o homem julgador nunca estava incorreto, ou sentia-se culpado, pois estava agindo pelo querer sobrenatural.

Em outra era do Direito Penal, surgiu a ideia de humanização da pena; esta baseava-se em punir de forma mais branda, mais leve. As torturas e a pena de morte foram praticamente banalizadas. Crimes de roubo, por exemplo, não tinham como punição a execução; esta era apenas para crimes mais intensos, o que mesmo assim incomodava parte da coletividade.

Após esse período violento e conturbado do Direito Penal, surgiu um período mais ameno chamado de Iluminismo; neste momento, os movimentos ideais encontravam-se com pensamentos mais livres, as pessoas buscavam mais informações e sabedoria, principalmente no que diz respeito à política, cultura, e filosofia social.


Quanto as penas e castigos, a era do iluminismo impôs certo limite ao Estado Absolutista, existente na época. O indivíduo se aproximara mais de sua liberdade e as “sentenças” eram arbitradas de forma mais pontual, considerando os motivos e os impulsos que levaram o homem a cometer o delito.

A fase do iluminismo foi muito marcante para o Direito Penal, sendo que permanece parte de suas características até os dias atuais. Pode-se dizer que o iluminismo foi um divisor de águas e uma tentativa positiva à ruptura do Estado Absolutista.

O Direito Penal nunca deixou de evoluir, ele posicionou-se sempre com as necessidades da sociedade ou a frente dela. A proteção dos bens jurídicos foi mudando sua forma, foi adaptando-se as buscas do homem; e a constante evolução do Direito Penal recepciona um Estado Democrático de Direito.

Nessa concepção, buscou-se abranger os direitos e os deveres de todos os integrantes da sociedade para que evoluíssem da mesma forma. Neste período, é absolutamente necessário que o homem entenda qual a sua função na sociedade.

O bem que o Direito Penal precisa tutelar não é somente o individual, estipulando, dessa forma, um contrato social do homem com a sociedade, em que ambos precisam fazer jus àquilo que está acordado, considerando o poder do ente estatal em organizar qualquer resquício de anarquia, tendo em vista, também, os limites impostos a este Estado.

Com a dita evolução do Direito Penal, apresentam-se três fases deste; a primeira fase é baseada em soluções de conflitos, de maneira desproporcional e injusta, as sansões eram baseadas em execuções de forma brutal. Após isso, a sociedade começou a entender a necessidade de uma organização social mais justa, e, para todos, os castigos passaram a ser mais brandos. Os indivíduos entendiam que havia necessidade de cumprir um contrato social estipulado pela própria sociedade para que se pudesse viver, de forma harmoniosa, em coletividade.

Direito Penal do Inimigo


É com a necessidade dessa estrutura social que nasce a terceira velocidade do Direito Penal. Os entes sociais encontram-se divididos entre a ressocialização do delinquente e sua total exclusão; a essa prática, deu-se o nome de “Direito Penal do Inimigo”, definido por juristas como o Direito Penal do retrocesso.

O Direito Penal do Inimigo assombra a ideia de igualdade jurídica, política e social; entende que nada mais é que punir o indivíduo duas vezes; primeiro, prendendo-o em cadeias, totalmente subumanas, existentes no Brasil, e, segundo, não lhe dando condições nem chance de retomar a sua dignidade.

A prática desse ato de punição faz entender que o indivíduo que cometeu um crime não é digno e nem tem mais condições de voltar ao convívio comunitário, visto a quebra do contrato social. Dessa forma, ele não tem mais a característica de cidadão, e, sim, de inimigo.

É sabido que o Direito Penal e a própria sociedade encontram-se em momento de calamidade, em que a violência extrema e a falta de punibilidade assombram a todos. Ademais, é necessário que se encontrem meios de não apenas equilibrar o convívio social e a ressocialização dos indivíduos, como também diminuir, de forma intensa, os crimes cometidos por aqueles que já são considerados inimigos sociais.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Andre Luis do Nascimento Faustino - novatio legis in mellius

Para entendermos a novatio legis in mellius, é necessário compreender a extra-atividade da lei penal, sendo essa um gênero com duas espécies: ultra-atividade e retroatividade. Segundo Rogério Greco (2017, p.159):
Chamamos de extra-atividade a capacidade que tem a lei penal de se movimentar no tempo regulando fatos ocorridos durante sua vigência, mesmo depois de ter sido revogada, ou de retroagir no tempo, a fim de regular situações ocorridas anteriormente à sua vigência, desde que benéficas ao agente.
Assim sendo, a retroatividade da lei se dá em circunstâncias em que foi sancionada lei posterior ao fato delituoso com preceito primário ou secundário mais benéfico.
Nesse sentido, cria-se uma novatio legis in mellius. Independentemente do fato delituoso, a lei manterá sua extra-atividade sempre em benefício do acusado, ou, muitas vezes, do já condenado.
Um exemplo recente, e provavelmente conhecido por todos os leitores do Canal Ciências Criminais, é a Lei 13.654/18, que altera o Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de Dezembro de 1940, ou seja, altera nosso Código Penal. A alteração é especificamente no art. 155 e art. 157.
A promulgação da Lei 13.654/18 criou, como já referido, uma novatio legis in mellius.
Os agentes que incidiram, por exemplo, no art. 157, §2°, I, CP, antes de entrar em vigor a lei mais benéfica, que revoga o inciso I, serão beneficiados, pois se trata de lei mais benéfica e essa retroage.
Se o agente já foi condenado, ainda assim retroagirá a lei, exceto se já cumpriu a pena.
Inclusive, nosso Código Penal prevê tal possibilidade no art. 2º, parágrafo único:
Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
A retroação da lei implicará, necessariamente, no afastamento da majorante existente no art. 157, §2º, I, CP, e, consequentemente, no tempo de pena que deve ser cumprido. Em decorrência do exposto, todos os prazos para benefícios são alterados, como por exemplo, progressão de regime.
Importante lembrar a Súmula 611 do STF, que preconiza:
Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna.
Acredito na possibilidade de ser novamente alterada a lei, para que não seja majorado somente o emprego de arma de fogo, mas o emprego de arma, como era previsto anteriormente, pois dessa maneira existe a possibilidade de ser alcançado pela majorante a utilização de arma branca.
Confirmando-se essa alteração, deve-se ficar atento, pois estaremos diante de uma novatio legis in pejus, e, assim sendo, não retroage para prejudicar os que já foram beneficiados pela lei mais benéfica, ou ainda, não pode prejudicar quem cometeu determinado delito na vigência da lei mais benéfica, todavia, não tendo sido julgado ainda, pois permanece a ultra-atividade da lei anterior mais benéfica.
Ultra-atividade da lei se dá quando uma lei posterior ao fato delituoso é sancionada em sentido mais prejudicial ao agente. Essa lei posterior mais gravosa chamar-se-á de novatio legis in pejus, provocando a extra-atividade da lei, em sua espécie intitulada de ultra-atividade, pois os agentes que cometeram crime anteriormente à lei penal mais gravosa, serão julgados pela lei mais benéfica, ainda que já extinta.
Assim deve ser, pois do contrário afrontaria o princípio da legalidade, já que nulla poena sine lege, e afrontaria à CF, uma vez que a mesma preconiza em seu art. 5º, XXXIX:
não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Ou seja, fazer com que a lei mais gravosa retroaja é punir o indivíduo com algo que até a data do fato não era previsto. É aplicar uma lei que não existia. Em síntese, e de maneira mais compreensível, é punir quem colocou camisa azul ontem, pelo fato de hoje ser proibido.

REFERÊNCIAS
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 17 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Teoria dos Jogos


                                              TEORIA DOS JOGOS

Na linha dos ensaios anteriores, sobre Teoria dos Jogos, continua-se necessário, para falar de recompensas nos e dos Jogos Processuais, desmistificar certas ideias que surgem de pronto quando se fala do último pilar que sustenta e funda as bases desta Teoria.

Recompensa diz respeito à pretensão do jogador, aquilo que ele quer obter com a execução da tática, do plano de ação norteado pelas estratégias, limitados pelas regras do jogo, objetivas e ocultas.

Assim como todos os outros pilares da Teoria dos Jogos, as recompensas também possuem sua face oculta, quer dizer, os jogadores podem possuir desejos e objetivos muitas vezes não explicitados no jogo processual. Muitas vezes para além do Processo Penal.

Nesse sentido, tem-se que as Recompensas que se busca, quando se joga o jogo processual, constituem-se como metas: obtenção da procedência, procedência parcial ou improcedência da denúncia, como resultado do jogo processual. Dessa forma, cada jogador pode querer ganhar, perder ou posicionar-se como indiferente para com o resultado do jogo, bem como negociar vitórias e perdas parciais, barganhar pelo resultado desejado (ROSA, 2016).

Elas variam a cada partida, visto que os jogos oportunizam a obtenção de certas recompensas que outros não oferecem, e, portanto, constata-se a existência de recompensas paralelas a condenação ou absolvição do acusado. Igualmente não se pode afirmar que a acusação quer sempre condenar e a defesa sempre absolver, devido a incidência de interesses mascarados pelos jogadores-processuais, mascarados no requerimento condenatório, absolutório, nos acordos de colaboração premiada, nos acordos extra autos.

Por fim, não se pode ignorar o fato de que o jogador-julgador, do mesmo modo, almeja alcançar determinados resultados, pois é capaz de mensurar, sendo nele que recai, a consequência de decidir de um jeito ou de outro. É notório o que se aplaude, hoje, no processo penal (feito de) espetacular (CASARA, 2017), sendo, as palmas, e por que não, (mais) uma recompensa?

REFERÊNCIAS
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
CASARA, Rubens R R. Processo Penal do Espetáculo. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

André Luis do Nascimento Faustino - Alguns princípios do DP


Princípio da Intervenção Mínima: Direito penal intervir minimamente na vida das pessoas e só atuando quando os demais ramos do direito forem insuficientes para produzir os bens jurídicos mais importantes.
 
Princípio da Culpabilidade: A culpabilidade pode ser elemento integrante do conceito de crime, medidor de pena, mas em princípio significa a vedação a responsabilidade penal objetiva sem culpa ou dolo. A culpa é uma exceção para haver responsabilização tem que estar expresso
 
Princípio da Insignificancia : Refere-se aos crimes de bagatela, sem significancia, ou importancia em que se verifica a mínima ofensividade da conduta, reduzido grau de reprovação social, baixa periculosidade e mínima lesão ao bem jurídico.
 
Princípio da adequação social: A conduta apesar de se adequar formalmente ao tipo , é aceita socialmente e considerada adequada. Serve de norte para deixar de proibir condutas que são aceitas socialmente.
 
Princípio Da Humanidade: O preso deve ter respeito a sua integridade física ou mental, veda a pena de carater cruel, pena de banimento, pena de morte salvo em caso de guerra declarada, pena perpetua e de trabalhos forçados
 
Princípio da responsabilidade pessoal: A pena não passará da pessoa do condenado, não repercutindo em outrem.

domingo, 6 de maio de 2018

André Luis do Nascimento Faustino - A presunção de inocência no Brasil é seletiva



         A presunção de inocência no Brasil é seletiva 

O Conselho Nacional de Justiça organiza dados do sistema carcerário do Brasil e recomenda que todas as pessoas presas devem ser cadastradas no Banco Nacional de Mandados de Prisão até o final de maio.

No entanto, segundo levantamento do Correio do Povo, apenas 211 mil presos de um universo de 726 mil foram cadastrados.

Ao ser questionado sobre se a sistematização das informações pode levar à ampliação do número da população carcerária, já que há mais de 500 mil mandados de prisão em aberto, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, especialista ouvido pelo jornal, disse que seria um “total colapso”.

Atualmente, cerca de 40% da população carcerária é formada por presos que nem sequer foram julgados na primeira instância.

É um universo de presos acompanhando os processos de forma precária ou mesmo não acompanhando processo nenhum, por não contarem com advogados. E um sem número de pessoas que deveriam estar atrás das grades por crimes graves como homicídios.

A presunção de inocência no Brasil é seletiva.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Andre Luis do Nascimento Faustino - Mandado de BA Coletivo

A busca domiciliar, como o próprio nome indica, é aquela feita na casa de alguém. Sendo a casa, nos termos de preceito constitucional, o “asilo inviolável do indivíduo” (art. 5º, XI, da CF), somente nas hipóteses expressamente previstas em lei se admite exceção a tal princípio. Preocupou-se o constituinte, assim, em homenagear remotos dogmas da civilização, que sempre procuraram privilegiar o direito individual de não ser molestado em casa. O digesto já previa, em célebre máxima, “que a casa seja para cada um o refúgio e o receptáculo seguríssimo (Digesto II, 4, fr. 18). Conforme Marco Túlio Cícero, no Prodomo, 41, “que é mais sagrado, que é mais protegido do que toda religião, do que a casa de cada um?”.  E a famosa expressão “my house is my castle” é explicada por João Barbalho, em sua Constituição Federal Brasileira – comentários, 1902, p. 318: “E por que razão a casa de cada um é sua cidadela, sua fortaleza? Será por ser defendida por muralhas? Não. Seja mesmo uma choupana, em que penetrem a chuva e o vento, o rei não pode lá entrar”. Em regra, portanto, não é permitido o ingresso na casa alheia sem o consentimento do morador, e, por conta disso, somente nas hipóteses previstas no próprio texto constitucional é que se admite exceção a tal mandamento.
Como exceções ao princípio geral, permite-se o ingresso na casa de alguém: 1) a qualquer hora, em caso de flagrante delito, desastre ou para prestação de socorro; 2) fora de tais hipóteses, somente por meio de mandado judicial e durante o dia. Tourinho Filho indica outras exceções que, embora não previstas em lei, admitiriam o ingresso na casa alheira. Assim, aquele que invade o domicílio em legítima defesa de terceiro, vítima de agressão praticada pelo dono da casa; ou quem o faz em estado de necessidade, fugindo de um perseguidor; há, ainda, a possibilidade de adentrar a casa no cumprimento de um dever legal (visita do mata-mosquito), ou no exercício regular de um direito, como na hipótese do art. 587 do Código Civil [atual art. 1.313, inc. I], que obriga o dono da casa a consentir a entrada do vizinho, ‘quando seja indispensável à reparação ou limpeza, construção e reconstrução de sua casa’” .
A regra, portanto, fora dos casos excepcionados na própria Constituição Federal, é de que a violação da casa de alguém seja determinada por mandado judicial de busca e apreensão.
O Código de Processo Penal disciplina a matéria a partir do art. 240, cujo parágrafo primeiro autoriza a busca domiciliar para: a) prender criminosos; b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; g) apreender pessoas vítimas de crimes; h) colher qualquer elemento de convicção.
Tão importante quanto o dispositivo que elenca, em rol exemplificativo, os possíveis fundamentos para busca e apreensão, o art. 243 disciplina a forma sob a qual deve ser realizada a diligência. Segundo a lei, mandado judicial deve:
I – indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador;
II – mencionar o motivo e os fins da diligência;
III – ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir.
Interessa-nos sobretudo, neste momento, o primeiro requisito, que impõe a indicação, com a maior precisão possível, da casa em que será realizada a diligência e do nome do respectivo proprietário ou morador. O que se busca é a individualização da busca, que, repita-se, é exceção à inviolabilidade constitucional do domicílio e deve ser promovida com a cautela necessária para evitar que pessoas não envolvidas na investigação sejam constrangidas pela violação desnecessária de sua intimidade.
Ocorre que, em algumas situações, o cumprimento à risca do mandamento legal torna absolutamente inviável a realização de diligências imprescindíveis para a apuração de gravíssimas infrações penais.
Atualmente, como se tem noticiado amplamente, o Estado do Rio de Janeiro está sob intervenção federal na área da segurança pública, que passou ao comando de um general do Exército. A drástica – e inédita – medida foi motivada pelo caos instalado por ações do crime organizado, que escapou do controle das polícias estaduais.
A intervenção foi decretada para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública, o que, evidentemente, contempla operações de natureza policial para a prisão de criminosos e a apreensão de objetos ilícitos, notadamente armas e drogas.
Neste cenário, destaca-se o fato de que a cidade do Rio de Janeiro é peculiar devido à sua geografia montanhosa, que propiciou, ao longo das décadas, a ocupação de morros por milhões de pessoas, que se instalaram precariamente, sem endereço definido, em barracos quase sempre dispostos de forma a tornar impossível qualquer individualização. Este tipo de ocupação, aliada à omissão de sucessivos governos na área de segurança pública – e em várias outras –, propiciou que facções criminosas simplesmente tomassem para si o controle de praticamente todo o território ocupado. O que se vê são pessoas submetidas a um poder paralelo criminoso. Algumas simplesmente aderem a esse poder e passam a integrá-lo, enquanto outras vivem sob tensão permanente, na expectativa de que em algum momento sejam atingidas pelas práticas criminosas que vigoram nesses locais. Os que se integram abrigam criminosos e permitem que em suas residências sejam escondidas armas e drogas; os que vivem sob jugo muitas vezes são obrigados a colaborar.
Tais circunstâncias trazem em si uma imensa dificuldade para as operações de combate ao crime.
Com efeito, uma vez que as forças de segurança iniciem a tomada do território dominado pelo crime organizado, é imprescindível que domicílios sejam devassados para que os agentes públicos possam apreender objetos ilícitos e prender criminosos. Mas, ainda que se tratasse de uma situação normal, em que a polícia judiciária teria à sua disposição meios de inteligência, seria praticamente impossível identificar precisamente quais domicílios deveriam sofrer a busca. A disposição das casas e a inexistência de endereços certos impossibilitam a vinculação a moradores determinados e tornam impraticável a expedição de mandado nos exatos termos do art. 243, inc. I, do CPP.
Ora, se a dificuldade se imporia à polícia judiciária, que não raro investiga determinados fatos ao longo de meses, com muito mais razão deve se impor ao Exército durante uma intervenção que deve ser executada prontamente.
Por outro lado, não é possível, sob pena de tornar imprestáveis as provas eventualmente colhidas, que as forças de segurança simplesmente violem domicílios sem nenhum respaldo judicial. É imprescindível que o Judiciário exerça algum tipo de controle diante da relativização de tão cara garantia constitucional.
Por isso, o ministro de Estado da Defesa anunciou que, para viabilizar as ações militares durante a intervenção, serão solicitados mandados de busca e apreensão coletivos, os quais devem ser expedidos sem especificar quais imóveis serão objeto de devassa e quais pessoas suportarão a medida.
Este procedimento, que vai de encontro à disposição legal que exige precisão no mandado de busca e apreensão, tem sido utilizado diante da impossibilidade de empreender de outra forma as diligências. Já ocorreu no próprio Estado do Rio de Janeiro em outras ocasiões, nas quais os mandados faziam referência apenas a bairros ou ruas, quando possível a identificação.
É fato que muitas pessoas são atingidas simplesmente porque residem no local, sem que lhes recaia nenhuma suspeita específica da prática de crime. Mas também não se pode negar que, ponderando os interesses em jogo, não é irrazoável que prevaleça a iniciativa de desmantelar organizações criminosas que impõem o caos e o terror generalizado. Nessas localidades, a ação policial baseada no mandado coletivo é a única forma de fazer cessar atividades criminosas de extrema gravidade e que vitimam inclusive os moradores injustamente atingidos pela busca domiciliar.
Os tribunais, no entanto, se dividem a respeito do cabimento desse tipo de medida. O STJ chegou a deferir liminar em habeas corpus – que, por prejudicialidade, não teve o mérito julgado –, na qual restabelecia decisão também liminar proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que havia suspendido a execução de mandados de busca e apreensão coletivos:
“(…) Com efeito, como observado na decisão do eminente Desembargador João Batista Damasceno, que deferiu a liminar na origem, em regime de plantão, o padrão genérico e padronizado com que se fundamentam decisões de busca e apreensão em ambiente domiciliar em favelas e bairros da periferia – sem suficiente lastro probatório e razões que as amparam – expressam grave violação ao direito dos moradores da periferia. A busca e apreensão domiciliar somente estará amparada no ordenamento jurídico se suficientemente descrito endereço ou moradia no qual deve ser cumprido em relação a cada uma das pessoas que será sacrificada em suas garantias. E, ainda que não se possa qualificá-la adequadamente é necessário que os sinais que a individualize sejam explicitados (fl. 160).
Da mesma decisão, extraio mais os seguintes trechos (fls.160): No presente caso, temos um mandado judicial genérico, expedido com eficácia territorial ampla, geograficamente impreciso, que não se preocupa em determinar o fato concreto a ser apurado. Pelo seu alto grau de dano a valores constitucionais, é absolutamente inadmitido o mandado genérico para tantas comunidades quanto são descritas na decisão recorrida. Faz-se imprescindível que a decisão e o mandado determinem qual a correlação dos indícios probatórios que se pretendem obter com a invasão de cada um dos domicílios a serem buscados. E, isto, não ocorreu.
Assim, entendo presente o fumus boni iuris, em razão da ausência de individualização das medidas de apreensão a serem cumpridas, o que contraria diversos dispositivos legais, dentre eles os arts. 242, 244, 245, 248 e 249 do CPP, além do art. 5º, XI, da Constituição Federal: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judiciar. Na minha concepção, também caracterizado o periculum in mora, diante da possibilidade concreta e iminente de ofensa ao direito fundamental à inviolabilidade do domicílio. Ante o exposto, defiro a liminar para suspender os efeitos da decisão ora impugnada, restabelecendo a liminar deferida pelo eminente Desembargador João Batista Damasceno em 25/08/2017 (fls. 147/162)” (HC 416.483/RJ, j. 18/09/2017).
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem decisões ora admitindo, ora rechaçando a possibilidade de expedir mandados coletivos:
“(…) 5. Forçoso reconhecer que, no caso, o deferimento da medida cautelar de busca domiciliar não se revela idôneo, já que não individualiza minimamente a unidade domiciliar objeto de violação, qual seja, a ¿casa¿, nos moldes definidos pelo inciso I do art. 243 do Código de Processo Penal, que deve ser indicada ¿o mais precisamente possível¿, tampouco informa o ¿nome do respectivo proprietário ou morador¿. 6. Busca domiciliar que possui como característica precípua a referibilidade, não sendo, portanto, um fim em si mesma, estando, ao revés, vinculada ao procedimento investigatório cuja efetividade se procura assegurar. Logo, a medida em questão não pode constituir uma autorização genérica para que se reúna as fundadas razões que deveriam justificá-la, sob pena de subversão total de sua lógica e, ainda, de delegação à autoridade policial não apenas da executoriedade do ato, mas da própria delimitação de seu objeto – a casa -, dos cidadãos que terão os seus direitos fundamentais mitigados e, por conseguinte, do alcance da medida sujeita à cláusula da primazia judiciária (…)” (HC 0061167-57.2016.8.19.0000, j. 02/02/2017).
“(…) Bem verdade que deve o mandado de busca e apreensão indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do proprietário ou morador. Todavia, como muito bem realçado pela Juíza de primeiro grau, no plantão noturno, numa realidade em que o domínio, há mais de 30 (trinta) anos, de facção criminosa armada “impede a permanência do poder público para regulação e instalação de equipamentos de indicação e individualização de ruas e localidades; numa realidade em que todos os mínimos espaços foram ocupados de forma irregular, sendo impossível o acesso senão por becos aleatórios e acidentados, numa realidade em que novas “casas” são fundadas de forma independente, e quase imediata, pelo simples acréscimo de materiais a lajes de outras casas, sem que sejam registradas e ordenadas, não há como individualizar e indicar numerações sem uma incursão ao local”. Neste ponto, é interessante mencionar que a busca e apreensão possui, em regra, natureza jurídica de meio de prova, mas também pode revestir-se de caráter assecuratório de direitos. No caso em questão, esta segunda natureza, associada à primeira, demonstra que ambas se amoldam à medida deferida, em virtude de buscar resguardar os interesses dos proprietários que estão sendo burlados em seus direitos absolutos e plenos de usar, gozar e dispor de seus bens, sendo coagidos a permitir que membros da facção criminosa deles se utilizem para guardar armas e substâncias tóxicas, ou como abrigos estrategicamente localizados, garantindo-lhes superioridade tática. ORDEM DENEGADA, com a determinação do imediato cumprimento da decisão aqui proferida, com determinação de expedição de ofícios” (0048172-75.2017.8.19.0000, j. 26/09/2017).
Note-se que a segunda decisão transcrita faz referência exatamente ao fato de que muitos moradores são coagidos pelos membros das organizações criminosas a permitir que suas casas sejam utilizadas para acobertar e disfarçar atividades ilícitas. Sem que se permita examinar as residências que integram as localidades dominadas por essas organizações, é impossível obter qualquer sucesso em operações de índole policial. E, uma vez impraticável a individualização dos imóveis, a única medida viável é realmente a expedição de mandados coletivos, que façam referência apenas ao bairro ou mesmo à rua, caso seja possível.


Rogério Sanches Cunha

Professor de Direito e Processo Penal do CERS CONCURSOS; Promotor de Justiça - Estado de São Paulo; Fundador do MeuSiteJurídico.com e do MeuAppJurídico.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

ACESSO ÀS INFORMAÇÕES DE CELULAR ENCONTRADO NO LOCAL DO CRIME — LICITUDE DA PROVA

É lícita a prova decorrente do acesso às informações constantes em aparelho celular esquecido pelo investigado no local do crime. O Juiz a quo absolveu o réu da prática do crime de roubo de aparelho celular da vítima sob o fundamento de ilicitude das provas produzidas durante a investigação criminal, uma vez que foram obtidas por meio do aparelho celular do acusado, sem autorização judicial e em ofensa ao direito fundamental à intimidade. O Ministério Público interpôs recurso, sustentando a validade das provas produzidas e a comprovação da autoria e da materialidade delitivas. O Relator destacou que a situação em análise se distingue das hipóteses de utilização dos elementos probatórios advindos da consulta aos aparelhos celulares licitamente apreendidos e vistoriados pelos policiais sem autorização judicial, pois o celular foi esquecido pelo acusado no local do crime, quando, diante da reação da vítima, fugiu. No caso dos autos, o Desembargador ressaltou que o acesso à agenda telefônica se assemelha à colheita de impressões papiloscópicas, de saliva, de fios de cabelo ou de outros vestígios deixados pelo autor do crime no local do ilícito, capazes de conduzir à sua identificação, que devem ser investigados pela autoridade policial (art. 6º do CPP). Assim, a Turma concluiu pela legalidade das provas produzidas, por não vislumbrar afronta das garantias à privacidade, à intimidade e ao sigilo de dados.

Acórdão n. 1006433, 20160910037205APR, Relator Des. SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 23/3/2017, Publicado no DJe: 31/3/2017.

André Luis do Nascimento Faustino - Tese subsidiária


             TESE SUBSIDIÁRIA DE MÉRITO


Há quatro itens que podem ser incluídos nessa categoria e você deve obedecer exatamente a essa ordem ao desenvolver as teses para postular os pedidos relacionados

a) Desclassificação: verifique se não é possível defender-se a existência de crime mais brando do que aquele constante na denúncia ou queixa;

b) Dosimetria: verifique se é possível pedir que a pena base seja fixada no mínimo, além da exclusão de eventuais circunstâncias desfavoráveis (ex.: maus antecedentes), agravantes, majorantes ou qualificadoras e do reconhecimento de eventuais atenuantes, minorantes ou privilégios;

c) Regime de cumprimento da pena: veja se, em face da pena estimada acima, é possível defender-se o cabimento de regime inicial semiaberto ou aberto;

d) Benefícios penais: verifique se é pertinente defender-se a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos3 (art. 44 do CP) ou a concessão do sursis (art. 77 do CP).

Quanto ao regime inicial para crimes hediondos ou equiparados, calha destacar que, embora o § 1.° do art. 2.° da Lei 8.072/1990 preveja que o regime inicial deve ser obrigatoriamente o fechado, tal previsão foi considerada inconstitucional pelo Plenário do STF, no HC 111.840/ES, de relatoria do Min. Dias Toffoli.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

André Luis do Nascimento Faustino - prisão preventiva em crimes culposos

É possível a prisão preventiva em crimes culposos?

Face aos termos expressos da lei (art. 313, I, do CPP), afasta-se, de plano, a possibilidade de decretação da prisão preventiva pela prática de crime culposo.

Para os crimes culposos, o texto da lei não dá margem a nenhuma espécie de dúvida: não é cabível a decretação da prisão preventiva. 

E, de fato, a própria natureza dessa espécie de delito, em que inexiste a voluntariedade do agente, revela-se incompatível com a decretação de tão drástica medida. Se prisão preventiva já se viu decretada, por exemplo, em delitos de trânsito, é porque se identificou, no caso concreto, a ocorrência do chamado dolo eventual

Mais aí o delito é doloso e não mais culposo.

Material extraído da obra Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos (2017)

segunda-feira, 24 de julho de 2017

André Luis do Nascimento Faustino

André Luis do Nascimento Faustino

O instituto da delação premiada e a sua eficácia no direito penal e processual penal brasileiro

A delação premiada como forma de persecução da verdade pelo Estado é, desde a Lei nº 8.072 de 1990, quando foi implantada no direto brasileiro, fonte de inúmeras discussões doutrinárias, principalmente acerca da sua incoerência com os valores sociedade, devido ao dilema moral em que se insere o criminoso que se vê coagido à traição. Para dar início ao estudo, faz-se conveniente alocar no sistema penal brasileiro o instituto a ser estudado.

A confissão configura-se como meio de prova, assim como qualquer outro, devido ao sistema do livre convencimento motivado ou persuasão racional adotado pelo Brasil, inserido no artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Por este sistema, Távora (2009) ensina que entre as provas não existe hierarquia, nenhuma se sobrepõe a outra, não há valoração, devendo o magistrado fundamentar a decisão do seu convencimento embasado nas provas existentes no processo.

O procedimento probatório foi alterado pela Lei n.º 11.719/2008, deslocando o interrogatório do acusado para o último ato do processo penal no procedimento ordinário e sumário. A audiência, conforme os artigos 400 e 531 do Código de Processo Penal, passou a ser una, concentrando-se nela todas as provas do processo, as declarações do ofendido, inquirição de testemunhas, esclarecimento de peritos, acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e o interrogatório.
Aduz Oliveira (2009, p. 366) acerca da nova ordem de recolhimento das provas, tratar-se “efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos, sem se ver, porém, constrangido ou obrigado a fazê-lo.” O interrogatório serviria mais como forma de defesa do que propriamente de prova.

Determinados procedimentos especiais, como a Lei n.º 11.343 de 23 de agosto de 2006 – crimes de tráfico de drogas – e a Lei n.º 8.038 de 28 de maio de 1990 – processos de competência originária dos tribunais – entretanto, conservam o interrogatório como primeiro ato da instrução.

Dando-se a confissão no cerne do interrogatório, ensina Capez (2009, p. 367) que “muda sua natureza jurídica de ato de defesa para, exclusivamente, meio de prova”.

Entretanto, ensina Oliveira (2009), que a confissão do réu pode ser feita fora do interrogatório, mas para adquirir valor probatório, deve ser confirmada perante o juiz. O mesmo pode-se inferir da delação. Poderá ser feita inclusive após o trânsito em julgado da decisão.
Adentrando ao instituto da delação premiada, Nucci (2008, p.431) conceitua que:
Delatar significa acusar, denunciar ou revelar. Processualmente, somente tem sentido falarmos em delação quando alguém, admitindo a prática criminosa, revela que outra pessoa também o ajudou de qualquer forma. Esse é um testemunho qualificado, feito pelo indiciado ou acusado. Naturalmente, tem valor probatório, especialmente porque houve admissão de culpa pelo delator.

Assim, para que seja configurada a delação, deve o réu confessar que praticou um crime em concurso com outra ou outras pessoas e revelar quem são essas pessoas.
Segundo Capêz (2009, p.367) a “Delação ou chamamento de co-réu é a atribuição da prática do crime a terceiro, feita pelo acusado, em seu interrogatório, e pressupõe que o delator também confesse a sua participação”. Dessa forma, a delação é intrínseca à confissão.

A delação é assaz discutida no âmbito do Direito Penal brasileiro e será discutida neste estudo, visto que induziria a violação da ética pessoal e do Estado; é acompanhado de um prêmio[1]; e possui características diferentes a depender do crime.

Tal instituto foi instituído para crimes praticados em concurso de agentes e encontra-se previsto no Código Penal, em seu artigo 159, §4º – crime de extorsão mediante sequestro; na Lei n.º 9.034 de 1995 – que trata do crime organizado; na Lei n.º 7.492 de 1986, alterada pela lei n.º 9.080 de 1995 – crimes contra o sistema financeiro nacional; na Lei n.º 9.613 de 1998 – crime de lavagem de bens, dinheiro ou valores; na Lei n.º 9.807 de 1999 – Programa Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas; na Lei n.º 11.343; na Lei n.º 8.072 de 1990 – que trata dos crimes hediondos;e  na Lei n.º 8.137 de 1990 – crimes contra a ordem tributária.

Para o crime de extorsão mediante sequestro, a pena pode ser reduzida de um a dois terços, sendo exigidos três requisitos segundo Greco (2011, p. 120): “a) que o crime tenha sido cometido em concurso; b) que um dos agentes o denuncie à autoridade; facilitação da libertação do sequestrado.”

Deve ser observado que duas ou mais pessoas tenham a mesma unidade de desígnio no cometimento do crime, não sendo necessária a revelação do cúmplice, mas somente do crime e a denúncia deve ajudar na libertação do sequestrado. Caso o agente denuncie o crime, mas este depoimento não conduza à libertação da vítima não pode aquele ser beneficiado. Encontrando-se todos os requisitos é obrigatória a redução da pena, que será quantificada pelo juiz. Ademais, a diminuição de pena é incomunicável com os delatados.

Em outros crimes, como o previsto na Lei n.º 8.072/90 devem ser revelados os cúmplices e não somente o delito. É o que Capez (2005, p. 442) conceitua como “traição benéfica”. Para os crimes hediondos, o artigo 8º, parágrafo único, assevera que “O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”. Já a Lei de proteção às vítimas, possibilitou em seu artigo 13 o perdão judicial ou a redução de pena de um a dois terços no artigo 14.

A utilização de tal medida em outros crimes, além dos arrolados, vem sendo difundida e se apresenta como válida para os que defendem a legitimidade desse instituto.
Sob o ponto de vista ético, em relação ao comportamento do Estado, afirma Oliveira (2009, p. 714):
Cumpre-nos examinar algumas alegações acerca da revogabilidade da medida (delação premiada), questionada pela doutrina, sobretudo do ponto de vista ético, dado que o Estado estaria se valendo da cooperação do delinquente para realizar a Justiça, ainda que ao preço da sua impunidade.

Entende-se que o Estado tem o dever de encontrar a verdade real, mas também de punir os infratores da lei de forma igual se praticado o mesmo crime. Estaria ele então buscando essa verdade de forma a propiciar ao delator uma possível redução ou extinção da pena que será aplicada aos comparsas sem a referida redução. Dessa forma Boldt (2006) [2] entende que “A delação premiada apresenta impropriedades, visto que rompe com o princípio da proporcionalidade da pena, pois se punirá com penas diferentes pessoas envolvidas no mesmo fato e com idênticos graus de responsabilidade”.

Contudo, não se verifica a impunibilidade do agente delator, visto que deve ser observada a individuação da pena, respondendo ele por sua participação tendo a sua pena atenuada por redimir-se do delito com vistas às consequências dessa confissão. É o que ocorre, por exemplo, na desistência voluntária ou arrependimento eficaz, artigo 15 do CP e no arrependimento posterior do artigo 16 do mesmo diplome legal.
Dessa maneira ensina Nucci (2008, p. 443) que:
não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber pena mais severa. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave.
Já quando a ética fizer referência ao comportamento do criminoso, de acordo com Moreira Filho (2007) [3]:
proporcionado pelo Estado, o acusado é incentivado a trair seus comparsas, e ainda se favorecer da sua própria torpeza, haja vista que além de cometer o crime ainda se beneficia do fato de delatar seus companheiros às autoridades.

A traição é utilizada em nosso ordenamento penal como causa de aumento de pena. Ao trair o comparsa, estaria o Estado instruindo que esta conduta, reprovável pela sociedade, na verdade traz benefícios. O réu confessa que praticou o crime e delata os seus comparsas, esperando a redução ou até mesmo a extinção as pena.

De outra forma entende Oliveira (2009, p. 715) ao esclarecer que:
Ocorre que não existe nenhum dever moral do associado criminoso para com o seu bando e/ou organização criminosa. O dever, quando presente, há de encontrar sua justificativa em códigos de conduta meramente individuais, particulares, sem quaisquer pretensões de universalidade, dado que voltadas (as ações) exatamente para a destruição de bens e valores assegurados em lei à comunidade jurídica.

A partir desse entendimento, fica prejudicada a suposta falta de ética trazida pelo instituto. Os valores dos homens bons são diferentes dos que participam das organizações criminosas, onde vigoram as suas próprias leis e não a lei do Estado. A delação atua de forma a proteger um bem jurídico lícito, não se associando à traição como forma de qualificação de um delito, por envolver um ilícito. Cabe ainda ao acusado o direito ao silêncio se não desejar cooperar com a justiça. Ademais, o artigo 206 do CPP, prevê que todas as testemunhas são obrigadas a depor e a falar a verdade sob pena de falso testemunho contido no artigo 342 do CP.

Seguindo esse entendimento, afirma Nucci (2008 p. 433) que: “o benefício constituído por lei para que um criminoso delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior”. O arrependimento é, dessa forma, incentivado.

O estímulo à traição revela-se pequeno em relação à mais rápida e eficaz solução dos casos concretos. 
O conflito entre a moral do criminoso que pode ou não delatar os comparsas, para possível diminuição ou extinção da pena, não é satisfatório para retirar o instituto da delação premiada do ordenamento jurídico, visto que estaria esta moral contida na organização criminosa e vinculada a causas ilícitas.

Todos têm o dever de colaborar com a justiça, e o Estado apenas premia o delator, a depender do caso concreto, de forma individual, pois este mostra-se capaz de se reinserir na sociedade com maior facilidade em relação aos comparsas. O criminoso pode se arrepender do ato ilícito cometido, sendo estabelecidas causas objetivas e subjetivas para a diminuição da pena ou para o perdão judicial.

A não utilização desse instituto caracterizaria uma regressão na forma de se buscar a solução de um delito e somente as organizações criminosas se beneficiariam com tal prática.

REFERÊNCIAS
FERREIRA, Aurélio Buarque de. Mini Aurélio. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
BODLT, Raphael. Delação Premiada: o dilema ético. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2625/Delacao-premiada-o-dilema-etico>. Acesso em: 02 de junho de 2011.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial: volume 2. 5. ed. São Paulo:  Saraiva, 2005.
______. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GRECO, Rogério. Curdo de Direito Penal: Parte Especial: Volume 2. 8. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
BRASIL. Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do artigo 5º, inciso XLIII da Constituição Federal e determina outras providências.
MOREIRA FILHO, Agnaldo Simões. Breves Considerações sobre a Delação Premiada. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/2487/1/Breves-Consideraccedilotildees-Sobre-A-Delaccedilatildeo-Premiada/pagina1.html>. Acesso em: 03 de junho de 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 2. ed. Salvador: JusPodivn, 2009.
Notas:

[1] Bem material ou moral recebido por serviço prestado, trabalho executado ou méritos especiais; recompensa, galardão, retribuição.

Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Rita de Cássia Antunes da. O instituto da delação premiada e a sua eficácia no direito penal e processual penal brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul. 2011. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.32780&seo=1>. Acesso em: 24 jul. 2017.

 

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Andre Luis do Nascimento Faustino - diferença entre ação controlada e flagrante preparado

Diferença entre ação controlada /               flagrante preparado

 

Diante dos últimos acontecimentos, uma dúvida surgiu: qual a diferença entre ação controlada e flagrante preparado? Para facilitar a distinção, o Prof. Rogério Sanches Cunha elaborou o seguinte quadro:


 

Rogério Sanches Cunha

Professor de Direito e Processo Penal
Promotor de Justiça - Estado de São Paulo

sábado, 13 de maio de 2017

André Luis do Nascimento Faustino - Prisão Preventiva

A decretação de prisão preventiva em audiência deve ser precedida da oitiva da defesa

A prisão preventiva, em um sentido amplo, é aquela decretada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória e tem significado idêntico a prisão processual, cautelar, provisória ou prisão sem pena. Em um sentido mais estrito, vem prevista nos arts. 311 e ss. do Código de Processo Penal. Trata-se da mais drástica das medidas cautelares estabelecidas no Código, razão pela qual, se possível, deve ser preterida em favor de outras restrições menos severas (art. 319).

Como toda medida cautelar, pressupõe: a) fumus boni iuris (representado pela prova da existência do crime e pelos indícios suficientes de autoria), que para alguns deveria na verdade ser substituído pelo fumus comissi delicti, pois o que se discute, em matéria penal, não é propriamente a aparência de um direito, mas se há mesmo um fato punível como crime; b) periculum in mora, que se revela pela necessidade de que sejam prontamente adotadas medidas ante o risco causado por eventual demora, existente, por exemplo, ante a concreta possibilidade de fuga que frustrará a futura aplicação da lei penal.

O art. 282, § 3º, do CPP dispõe que, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz deve intimar a parte contrária para que se manifeste a respeito do pedido de medida cautelar. A disposição legal tem o evidente propósito de possibilitar o exercício do contraditório àquele que será prejudicado caso a medida cautelar seja imposta. Embora louvável a preocupação do legislador, detecta-se até mesmo uma dificuldade de ordem prática para sua implantação. Imagine-se, na fase de inquérito policial, o juiz a consultar o investigado a respeito da possibilidade de suportar medidas cautelares que, de alguma forma, tolham sua liberdade, ainda que mais brandas que a prisão preventiva.

De qualquer forma, como ressalva o próprio dispositivo, a intimação é dispensável nas situações de urgência ou nas quais a prévia manifestação do agente acarrete o perigo de ineficácia da medida, como no caso da prisão preventiva. Uma medida dessa natureza não pode ser submetida a prévia intimação da parte, que certamente culminaria, na esmagadora maioria dos casos, na fuga do futuro preso.

Há, no entanto, uma situação particular: aquela em que os motivos para a preventiva surgem durante a audiência. Neste caso, o juiz pode decretar a preventiva sem ouvir o defensor do acusado? Ou deve conceder a palavra para que o defensor apresente seus argumentos contrários ao cerceamento da liberdade?

Segundo o STJ, neste caso deve ser proporcionada à defesa a oportunidade de manifestação, mesmo que o acusado não esteja presente na audiência. No caso julgado, o acusado não estava na audiência, mas era representado pela Defensoria Pública. A juíza que presidia o ato entendeu presentes os requisitos e fundamentos para a prisão preventiva e a decretou, negando, contudo à defesa, por falta de amparo legal, a possibilidade de se manifestar.

O tribunal considerou inválida a negativa ao considerar que, mesmo diante das dificuldades advindas da prévia manifestação sobre a possibilidade de que se decrete a prisão preventiva, diversas legislações internacionais têm se adequado para garantir, tanto quanto possível, a possibilidade de exercício do contraditório, a exemplo aliás do que faz o art. 282, § 3º, do CPP. Asseverou-se que negar à defesa, em plena audiência, a oportunidade de se pronunciar sobre qualquer questão levantada pela acusação desprestigia as regras básicas do contraditório e da bilateralidade da audiência e tangencia o autoritarismo.

É certo, como já dissemos, que a manifestação da parte quanto ao pedido de prisão preventiva que lhe atingirá pode, no mais das vezes, inviabilizar a medida. No caso da decretação em audiência, no entanto, não há sentido em proibir que a defesa se manifeste, independentemente da presença do acusado: se estiver presente, a possibilidade de fuga é nula; se não estiver, o cerceamento da palavra ao defensor não impedirá sua ciência a respeito da medida imposta.

  

Rogério Sanches Cunha

Professor de Direito e Processo Penal do CERS CONCURSOS; Promotor de Justiça - Estado de São Paulo

quinta-feira, 27 de abril de 2017

André Luis do Nascimento Faustino - Desafio da Baleia Azul - Lei 10.446/02

 Desafio da Baleia Azul e a Lei nº 10.446/02

Foi noticiado que o Ministro da Justiça determinou que a Polícia Federal investigue os eventos envolvendo o macabro DESAFIO DA BALEIA AZUL, que, em apertada síntese, tem por fim induzir, instigar ou auxiliar os participantes a ceifarem a própria vida, ocorrendo em vários Estados brasileiros. Mas a competência desse crime é federal? Qual o interesse da União? Qual inciso do art. 109 da CF/88 serve de fundamento para essa competência? A resposta deve considerar o artigo 1o da Lei 10.446/02:

Art. 1º Na forma do inciso I do § 1º do art. 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais:


I – sequestro, cárcere privado e extorsão mediante seqüestro (arts. 148 e 159 do Código Penal), se o agente foi impelido por motivação política ou quando praticado em razão da função pública exercida pela vítima;
II – formação de cartel (incisos I, a, II, III e VII do art. 4º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990); e
III – relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; e
IV – furto, roubo ou receptação de cargas, inclusive bens e valores, transportadas em operação interestadual ou internacional, quando houver indícios da atuação de quadrilha ou bando em mais de um Estado da Federação.
V – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e venda, inclusive pela internet, depósito ou distribuição do produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado (art. 273 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal). VI – furto, roubo ou dano contra instituições financeiras, incluindo agências bancárias ou caixas eletrônicos, quando houver indícios da atuação de associação criminosa em mais de um Estado da Federação.
Parágrafo único. Atendidos os pressupostos do caput, o Departamento de Polícia Federal procederá à apuração de outros casos, desde que tal providência seja autorizada ou determinada pelo Ministro de Estado da Justiça.

De acordo com o texto constitucional, a Polícia Federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: a) apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei (art. 144, § 1º, I, CF); b) prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; c) exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; d) exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. A nossa Constituição Federal (art. 144) anuncia que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Dentre os órgãos de segurança, destacamos, para a nossa explicação, a Polícia Federal.

A Lei nº 10.446/02 veio cumprir o mandamento constitucional, regulamentando o art. 144, § 1º, I, da Carta Maior. Com isto, a Lei dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme.
É fundamental recordar, no entanto, que esta Lei trata das atribuições da Polícia Federal, não influindo em nada na competência para o processo e julgamento do crime por ela investigado. 

Os crimes federais, isto é, os crimes de competência da Justiça Federal, são aqueles cuja identificação se depreende da atenta leitura do art. 109, CF. O fato de o crime demandar repressão uniforme – e esse parece ser o caso do DESAFIO DA BALEIA AZUL -, nos termos da Lei em apreço autoriza investigação da Polícia Federal, mas não permite concluir pela competência da Justiça Federal (permanecendo estadual).

Em resumo, podemos concluir que os crimes de competência da Justiça Federal serão investigados pela Polícia Federal (a quem cabe exercer, com exclusividade, as funções de Polícia Judiciária da União), mas nem todo crime investigado pela Polícia Federal será julgado na Justiça Federal.

A atribuição da Polícia Federal ocorrerá quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme. O objetivo do legislador é evitar o tumulto oriundo de informações desencontradas entre as Polícias Civis ou Militares de distintas unidades da Federação.

A despeito desta constatação, vale recordar que, nos termos do art. 1º da Lei, a atuação da Polícia Federal se dará sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados.
O rol do art. 1º da Lei 10.446/02 é meramente exemplificativo. O seu parágrafo único permite ao Ministro da Justiça determinar ou, simplesmente, autorizar ao Departamento de Polícia Federal que proceda à apuração de outros casos. Para tanto, é necessário o preenchimento dos pressupostos entabulados no caput, a saber: a) repercussão interestadual ou internacional; b) exigência de repressão uniforme. E aqui que se encaixa o DESAFIO DA BALEIA AZUL.

Destaque-se, por fim, que o simples fato do crime ser cometido por meio de computadores, ainda que tenha conexões internacionais, não induz, por si só, à competência da Justiça Federal. O delito será de competência da Justiça Federal – em hipótese menos provável – quando praticado em detrimento da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 109, inc. IV da Constituição) – ou, será mais comum, quando implicar em “crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente” (art. 109, inc. V da Carta). Assim, por exemplo, a veiculação de imagens de menores, em situação que caracteriza a pedofilia. Afinal, “o Brasil comprometeu-se a combater mediante tratado internacional o crime de pedofilia, circunstância que atrai a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inciso V, da Constituição Federal. Além de se tratar de delito praticado por meio da rede mundial de computadores, o que por si só já revela o caráter transnacional do delito, tem-se que as próprias instâncias ordinárias chegaram a essa conclusão, com base em fatos e provas carreadas aos autos, elementos esses que não podem ser revistos na via exígua do mandamus” (STJ – AgRg no RHC n° 29850/PR, Rel. Marco Aurélio Bellizze, j. 05.02.2013, DJe 15.02.2013). À exceção de tais hipóteses, os demais casos, em que pese eventual conexão transnacional, serão de competência da Justiça Estadual.

JURISPRUDÊNCIA
Competência da Justiça Estadual
CRIME PREVISTO NO ARTIGO 20, § 2º, DA LEI N.º 7.716/89 PRATICADO POR MEIO DA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES – ‘INTERNET’. CONDUTA DENUNCIADA DIRIGIDA A VÍTIMAS IDENTIFICADAS. OFENSAS DE CARATER PESSOAL. FIXAÇÃO DA JUSTIÇA ESTADUAL – “O simples fato de o suposto delito ter sido cometido por meio da rede mundial de computadores, ainda que em páginas eletrônicas internacionais, tais como as redes sociais ‘Orkut’ e ‘Twitter’, não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal. É preciso que o crime ofenda a bens, serviços ou interesses da União ou esteja previsto em tratado ou convenção internacional em que o Brasil se comprometeu a combater, como por exemplo, mensagens que veiculassem pornografia infantil, racismo, xenofobia, dentre outros, conforme preceitua o art. 109, incisos IV e V, da Constituição Federal. Verificando-se que as ofensas possuem caráter exclusivamente pessoal, as quais foram praticadas pela ex-namorada da vítima, não se subsumindo, portanto, a ação delituosa a nenhuma das hipóteses do dispositivo constitucional, a competência para processar e julgar o feito será da Justiça Estadual ” (STJ – AgRg nos EDcl no CC n° 120559/DF, Rel. Jorge Mussi, j. 11.12.2013, DJe 19.12.2013).

Competência da Justiça Federal
“A competência da Justiça Federal para processar e julgar os delitos praticados por meio da rede mundial de computadores é fixada quando o cometimento do delito por meio eletrônico se refere a infrações previstas em tratados ou convenções internacionais, constatada a internacionalidade do fato praticado (art. 109, V, da CF), ou quando a prática de crime via internet venha a atingir bem, interesse ou serviço da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 109, IV, da CF). No presente caso, há hipótese de atração da competência da Justiça Federal, uma vez que a divulgação/publicação/compartilhamento de imagens pornográficas, envolvendo menores por meio da internet, não se restringe a uma comunicação eletrônica entre pessoas residentes no Brasil, uma vez que o acesso ao e-Mule é permitido desde que alguém ligado a rede mundial de computadores, que possui arquivos em sua máquina, ligue-se a um servidor que pode ser conectado por outros usuários, em qualquer parte do mundo, sendo permitido a qualquer um que se conecte a esse ambiente virtual, o acesso às imagens lá compartilhadas, verificando-se, portanto, cumprido o requisito da transnacionalidade exigido para atrair a competência da Justiça Federal”  (STJ – CC n° 120055/RS, Rel. Alderita Ramos de Oliveira, j. 12.12.2012, DJe 01.02.2013).

* Em coautoria com Ronaldo Batista Pinto – Promotor de Justiça do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor do Sistema SEB-Estácio.

 Autor:

Rogério Sanches Cunha

Professor de Direito e Processo Penal do CERS CONCURSOS; Promotor de Justiça - Estado de São Paulo