A prisão em flagrante, diferentemente do que possa parecer, não se
exaure em um único momento, podendo ser dividida em fases
cronologicamente necessárias para a sua perfeita concretização. Isso
significa que a pessoa capturada ou detida em estado
flagrancial não está, de fato, presa. Por mais que nesses casos exista
uma restrição aos direitos da pessoa detida, a segregação efetiva da sua
liberdade de locomoção, que se concretiza com o recolhimento ao
cárcere, só acontecerá após decreto fundamentado do delegado de polícia,
que é a autoridade com atribuição constitucional e convencional[1] para análise dos fatos.
E não poderia ser diferente, uma vez que o nosso ordenamento jurídico permite que qualquer pessoa do povo prenda[2] o sujeito surpreendido em flagrante delito (Flagrante Facultativo), sendo dever dos policiais agirem nessas situações (Flagrante Obrigatório)[3].
Não obstante, é cediço que o cidadão comum e a grande maioria dos
agentes policiais não possuem, em regra, formação jurídica, razão pela
qual, não estão aptos a analisar o conceito de crime e as hipóteses
flagranciais previstas no artigo 302, do Código de Processo Penal. Essa
missão, conforme já destacamos, é de atribuição do delegado de polícia.
Feitas essas considerações, destacamos que a doutrina se divide em
relação às fases que constituem a prisão em flagrante. Para Renato
Brasileiro, por exemplo, a prisão em flagrante se inicia com a captura,
seguida de condução coercitiva à presença da autoridade e posterior
comunicação da prisão ao juiz[4]. Já Edilson Mougenot, identifica três momentos distintos da prisão em flagrante, que, segundo o autor, se inicia com a captura da pessoa encontrada em situação de flagrância, seguida da lavratura do auto pela autoridade competente e se encerra com o recolhimento do conduzido ao cárcere[5] (custódia).
O objetivo desse artigo é estabelecer a nossa visão acerca das fases da prisão em flagrante, que representam todo o iter que deve ser necessariamente percorrido para o seu aperfeiçoamento, senão vejamos.
1ª FASE: PRISÃO-CAPTURA
Conforme já consignado, esta primeira fase da prisão em flagrante
pode ser realizada por policiais ou qualquer um do povo. Trata-se da
detenção do indivíduo que acabou de cometer um crime, não importando a
natureza da infração (se de menor potencial ofensivo ou não), nem as
qualidades do agente (imputável ou inimputável). O objetivo principal da
prisão-captura é proteger o bem jurídico que está sendo lesado com a
conduta criminosa, impedindo, assim, a consumação da infração e
assegurando a identificação de sua autoria, bem como das fontes iniciais
de prova.
Mister destacar, nesse ponto, que, nos termos do artigo 5°, inciso
LXIII, da Constituição da República, o preso deve ser informado sobre os
seus direitos, entre os quais, o de permanecer calado. Assim, o
responsável pela primeira fase da prisão em flagrante do criminoso,
geralmente um policial, deve cientificá-lo acerca de seus direitos
constitucionais, especialmente sobre o seu direito de permanecer em
silêncio para não produzir nenhuma prova prejudicial à defesa. Caso opte
por se manifestar no momento de sua prisão, abrindo mão do seu direito
ao silêncio, tudo que disser poderá ser utilizado como prova por meio do
depoimento do policial que o deteve, inclusive porque, na qualidade de
funcionário público, suas afirmações gozam de relativa presunção de
veracidade.
Não podemos olvidar que a prisão-captura não é o momento adequado
para a realização do interrogatório do suspeito, principalmente porque
se trata de um meio de defesa, que, naturalmente, deve ser fruto de
reflexão e, se possível, efetivado com a assistência de um advogado. É o
delegado de polícia, como o primeiro garantidor da legalidade e da
justiça, a autoridade responsável pela formalização do interrogatório,
devendo, nesse contexto, assegurar todos os direitos do preso.
O policial responsável pela prisão-captura não deve começar a
interrogar o preso de maneira aleatória, o pressionando ou o
intimidando. Nesse momento, cabe ao agente da lei efetuar somente a sua
detenção e condução à Delegacia de Polícia. Apenas as diligências
essenciais ao contexto criminoso devem ser efetivadas, como, por
exemplo, a identificação da vítima ou de testemunhas que presenciaram o
fato.
É preciso ficar claro que o detido deve ser imediatamente conduzindo à
Delegacia de Polícia, não sendo lícita a realização de outras
diligências não essenciais ao fato criminoso. De modo ilustrativo, o
delinquente preso em flagrante pelo crime de tráfico de drogas, não pode
ser conduzido até sua residência para que se verifique se existem mais
drogas, armas, dinheiro ou outros objetos que demonstrem o seu
envolvimento com o tráfico. Tais diligências devem ser realizadas
posteriormente pela Polícia Judiciária, responsável pela perfeita
apuração dos fatos. No exemplo em questão, caberia ao delegado de
polícia representar pela concessão do mandado de busca e apreensão à
casa do suspeito, sendo que eventual resultado positivo do procedimento
subsidiaria ainda mais a materialidade delitiva da conduta.
2ª FASE: CONDUÇÃO COERCITIVA
Trata-se de um desdobramento natural da primeira fase
(prisão-captura). Sempre que uma pessoa estiver em situação de
flagrância, ela poderá ser detida e conduzida até a Delegacia de
Polícia, onde a autoridade policial analisará a legalidade da prisão.
Destaca-se que na lavratura do auto de prisão em flagrante, a pessoa
responsável pela efetivação desta fase recebe o nome de “condutor”, mas,
vale dizer, nem sempre o condutor será a mesma pessoa
responsável pela prisão-captura. É o que ocorre, por exemplo, nos casos
em que a própria vítima é responsável pela detenção do criminoso, sendo a
Polícia Militar posteriormente acionada apenas para realizar a sua
condução até o Distrito Policial.
3ª FASE: AUDIÊNCIA PRELIMINAR DE APRESENTAÇÃO E GARANTIAS
Esta etapa da prisão em flagrante concretiza a determinação constante
no Pacto de São José da Costa
Rica no sentido de que toda pessoa presa
deve ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou outra autoridade
autorizada por lei a exercer, de maneira atípica, funções judiciais.
Trata-se, sem dúvida, de uma garantia para o conduzido, representando um
avanço do sistema pátrio se comparado aos demais países, onde o preso
chega a ser apresentado ao juiz até 48 horas após a sua captura.
Mesmo com a progressiva implementação da famigerada Audiência de
Custódia, criada através da Resolução n°213/2015, do Conselho Nacional
de Justiça, que determina a apresentação à autoridade judicial, em até
24 horas, de qualquer pessoa presa em flagrante delito, defendemos que a
condução imediata do detido à Delegacia de Polícia constitui um avanço
em termos de garantias fundamentais.
Isto, pois, não raro,
prisões-capturas não são ratificadas pelo delegado de polícia, seja por
não restar demonstrado o estado flagrancial, seja por não haver indícios
suficientes de autoria ou até por se tratar de fato atípico. Do mesmo
modo, nos termos do artigo 322, do CPP, o preso poderá ser beneficiado
com a liberdade provisória mediante fiança concedida pelo próprio
delegado de polícia, assegurando, assim, a restituição imediata da sua
liberdade, evitando, em casos menos graves, o seu recolhimento ao
cárcere. Percebe-se, destarte, que o modelo brasileiro atende melhor aos
interesses dos presos.
Assim como na Audiência de Custódia realizada no Fórum, na Delegacia
de Polícia a autoridade de
Polícia Judiciária também deve efetuar uma
“Audiência Preliminar de Apresentação e Garantias”. Nota-se que o termo
“preliminar” se deve ao fato de que nova audiência será posteriormente
concretizada pela autoridade judicial.
É por meio dessa audiência que o delegado de polícia verifica se a
prisão-captura do conduzido foi legal, se estavam presentes as hipóteses
flagranciais do artigo 302, do CPP, se houve algum excesso por parte do
responsável pela detenção e, sobretudo, se os fatos que lhe são
apresentados constituem crime, devendo, para tanto, analisar todos
institutos que repercutem na sua caracterização. Outrossim, esse é o
momento do delegado de polícia, como primeiro garantidor da legalidade e
da justiça, assegurar todos os direitos do preso, entre eles o de
permanecer em silêncio, o de consultar-se com um advogado e o de
comunicar sua prisão aos seus familiares ou outra pessoa por ele
indicada.
Frente ao exposto, podemos concluir que essa etapa é essencial para a
formação do convencimento do delegado de polícia acerca dos fatos que
lhes são apresentados, ficando o decreto prisional e a consequente
lavratura do auto de prisão em flagrante vinculados às informações
coligidas durante a realização da audiência.
4ª FASE: LAVRATURA DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE
Trata-se de uma fase da prisão em flagrante cuja atribuição é
praticamente exclusiva do delegado de polícia. Caberá a esta autoridade
atuar como um defensor dos direitos individuais das pessoas envolvidas
na ocorrência, analisando a situação e, após efetivada Audiência
Preliminar de Apresentação e Garantias, decidir, fundamentadamente,
sobre a legalidade da prisão. Se após ouvir os envolvidos na referida
audiência, a autoridade policial concluir que não é caso de prisão em
flagrante, a pessoa conduzida será liberada apenas com a lavratura do
boletim de ocorrência, que, nesses termos, funcionará como uma espécie
de notitia criminis. Consigne-se, ainda, que, em tese, o condutor ou o responsável pela captura poderão responder por eventuais abusos.
Salientamos acima que a lavratura do auto de prisão em flagrante é de atribuição praticamente
exclusiva do delegado de polícia. Isso porque, excepcionalmente, o auto
também poderá ser lavrado pelo juiz de Direito, quando a infração for
cometida na sua presença e durante o exercício de suas funções. Contudo,
esse exemplo é muito raro, uma vez que as autoridades judiciais acabam
enviando o caso para a Delegacia de Polícia.
Merece destaque, outrossim, os casos que envolvem infrações de menor
potencial ofensivo, pois, em tais situações, se o conduzido assinar o
termo de compromisso previsto na Lei 9.099/95, não poderá ser lavrado o
auto de prisão em flagrante, mas apenas um termo circunstanciado da
ocorrência. Contudo, se ele se recusar, o auto deverá ser elaborado,
haja vista que o TC é condicionado a assinatura do referido termo[6].
Tendo em vista que a prisão em flagrante resulta na restrição de um
dos direitos fundamentais mais importantes da pessoa, qual seja, o
direito à liberdade de locomoção, é imprescindível que os motivos e as
circunstâncias da captura sejam documentadas em um auto, devendo o
delegado de polícia expor de maneira detida os fundamentos fáticos e
jurídicos da sua decisão. Do mesmo modo, é no auto de prisão em
flagrante que a autoridade policial deve analisar a possibilidade ou não
de concessão de liberdade provisória mediante fiança em benefício do
preso, nos termos dos artigos 322 e seguintes do CPP, representando, na
mesma peça de polícia judiciária, pela adoção de alguma medida sujeita à
cláusula de reserva de jurisdição, como a conversão do flagrante em
prisão preventiva, por exemplo.
5ª FASE: RECOLHIMENTO AO CÁRCERE
Após a lavratura do auto de prisão em flagrante, não sendo possível a
concessão de fiança pelo delegado de polícia ou, se concedida, o preso
não tiver condições de pagá-la, o conduzido/indiciado será recolhido ao
cárcere, onde ficará à disposição do Poder Judiciário.
6ª FASE: COMUNICAÇÃO DA PRISÃO AO JUIZ
Com o encerramento dos procedimentos de Polícia Judiciária, que
documentam e legitimam a prisão em flagrante, o delegado de polícia deve
enviar o auto no prazo máximo de 24 horas ao Poder Judiciário para que a
legalidade de prisão seja novamente analisada, desta vez, pela
autoridade judicial[7].
De acordo com a Lei 12.403/2011, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente[8] relaxar
a prisão (caso ela seja ilegal), converter o flagrante em prisão
preventiva (caso estejam presentes os requisitos do art.312, do CPP e
não for conveniente a aplicação de outras medidas cautelares menos
restritivas aos direitos individuais do preso) ou, ainda, conceder
liberdade provisória, com ou sem a imposição de outra medida cautelar.
O artigo 306 da nova lei também determina a comunicação da prisão em
flagrante ao Ministério Público, à família do autuado ou a qualquer
outra pessoa por ele indicada. Da mesma forma, o dispositivo legal impõe
o envio de cópia integral do auto à Defensoria Pública, caso o preso
não informe o nome de seu advogado[9].
Por fim, em obediência ao princípio constitucional do contraditório e
da ampla defesa, a lei determina a entrega de nota de culpa ao imputado
dentro do prazo de 24 horas.
REFERÊNCIAS
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 9ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
BORGES DE MENDONÇA, Andrey. Prisão e outras Medidas Cautelares Pessoais. São Paulo: Método, 2011.
BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Nova Prisão Cautelar. Niterói: Impetus, 2011.
NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 4ª edição. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias – Teoria e Prática de Polícia Judiciária. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.
SZNICK. Valdir. Liberdade, Prisão Cautelar e Temporária.ed.2ª. São Paulo: Universitária de Direito, 1995.
NOTAS
[1] Nos termos
do artigo 7°, item “5”, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos:
“Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à
presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais
e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta
em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade
pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em
juízo.”(Grifamos)
[2] A “prisão”, no contexto apresentado, não deve ser interpretada de maneira técnica, representando, na verdade, o momento da captura.
[3] Art. 301,
do CPP: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus
agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante
delito.”
[4] BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. p. 1264.
[5] MOUGENOT BONFIM, Edilson. Curso de Processo Penal. p.516.
[6] Em se
tratando da infração penal prevista no artigo 28 da Lei de Drogas
(usuário de drogas), o conduzido não poderá ser sujeito passivo do auto
de prisão em flagrante ainda que se recuse a assinar o termo de
compromisso da Lei 9.099/95.
[7] Não podemos olvidar que em algumas regiões o preso em flagrante deverá ser apresentado na Audiência de Custódia.
[8] A nova lei
inova nesse ponto e determina de maneira expressa que a decisão do juiz
ao analisar o flagrante deve ser fundamentada. Entendemos que tal
disposição seria desnecessária, uma vez que a própria Constituição da
República impõe que todos os atos devem ser motivados. Contudo, tendo em
vista que havia um constante desrespeito a essa regra, foi conveniente a
menção expressa na lei.
[9] Destacamos
que no Estado de São Paulo, a comunicação da prisão à Defensoria Pública
é feita por meio do sistema de intranet. No momento em que é
selecionada a opção “flagrante” no sistema da Polícia Civil de Registro
Digital de Ocorrência (RDO), a Defensoria Pública já passa a ter acesso a
todas as peças elaboradas no plantão de polícia judiciária.
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