Condução Coercitiva e oitiva do investigado ou testemunha à luz dos direitos fundamentais
A condução coercitiva consiste no tema que, atualmente, ocupa um lugar privilegiado no debate jurídico, em muito graças à ADPF 395, atualmente em trâmite no STF e ao confuso parecer do Procurador-Geral da República apresentado na mencionada ação.
Poderíamos tratar do uso da teoria da
proporcionalidade à brasileira pelo Procurador-Geral da República
(sonhamos em um dia vermos a utilização correta da teoria de Robert
Alexy!!!), poderíamos falar do equivocado uso da distinção entre regras e
princípios no contexto teórico do mesmo autor pelo Procurador-Geral da
República, como poderíamos ainda falar de como certamente o STF faria o
mesmo equivocado uso da proporcionalidade, caso a utilizasse nesta ação,
haja vista seu histórico de utilizar não seguir a teoria propriamente
dita.
O debate, contudo, se coloca após tais premissas, inclusive porque já tratamos desse tema em alguns artigos desta coluna.
O tema se insere em uma natural tensão
existente entre democracia e direitos fundamentais, representando, de
certo modo, a tensão entre participação do suposto autor do fato na
investigação criminal e o seu direito fundamental em não produzir provas
contra si mesmo.
André Ramos Tavares, ao tratar de dez
pressupostos para uma democracia deliberativa, afirma que o primeiro
pressuposto diz respeito à publicidade das decisões. De acordo com
Habermas, numa democracia deliberativa, todos os cidadãos afetados devem
ser chamados a participar do processo deliberativo para que tenham a
oportunidade de expressar sua visão do tema. O espaço público reclama,
naturalmente, essa interatividade entre os destinatários da decisão
final e os órgãos detentores de poder. Ademais, é também consequência
desse pressuposto, além de o destinatário da decisão final compor o
debate, a necessidade de se visualizar tal participação na construção da
decisão final, mesmo que o seu fundamento apresentado seja racional e
juridicamente refutado.
Em que pese o fato de o inquérito
policial ser sigiloso e inquisitivo, é possível fazer a adequação desse
primeiro pressuposto ao inquérito policial, como será abaixo analisado. A
análise desse primeiro pressuposto deve ser feita no contexto do art.
6º do CPP, em especial o inciso V, o qual determina o dever de a
autoridade policial ouvir o indiciado, devendo o respectivo termo ser
assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura.
Na nossa obra “Delegado de Polícia em
Ação: Teoria e Prática no Estado Democrático de Direito”, sustentamos a
obrigatoriedade de tal oitiva, a qual somente poderia ser dispensada em
casos excepcionais, como, por exemplo, quando o investigado estivesse
foragido ou em local desconhecido pela Polícia Judiciária. A finalidade
de tal posicionamento é direcionar uma crítica para algumas
jurisprudências teratológicas dos tribunais pátrios, tal como a decisão
abaixo do STJ que validou a desnecessidade da oitiva do indiciado
durante o procedimento investigativo, bem como impossibilitou a sua
eventual ativa participação na investigação criminal com o seu
depoimento, com pedidos de diligências e com juntada de documentos:
O inquérito policial e o procedimento
investigatório efetuado pelo Ministério Público são meramente
informativos, logo, não se submetem ao crivo do contraditório e não
garantem ao indiciado o exercício da ampla defesa. Desse modo, não se
vislumbra nulidade pela ausência de oitiva do investigado na fase
indiciária, sobretudo porque ele teve oportunidade de se defender de
todas as acusações antes do recebimento da denúncia pelo Tribunal a quo,
em virtude das prerrogativas de seu cargo de Promotor de Justiça ( HC
142089, julgado em 28/9/2010, Rel. Ministra Laurita Vaz.).
Essa crítica foi construída ao argumento
de que, a partir da base teórica apresentada, é direito subjetivo do
suposto autor do fato delituoso ser ouvido durante o curso do inquérito
policial para que apresente os seus argumentos, ressalvados alguns casos
excepcionalíssimos. Afinal, não se pode concluir uma investigação em
andamento em face de determinado cidadão quando o seu endereço para
eventual intimação é de conhecimento da Polícia Judiciária.
Pois bem. No artigo, “Investigação
Criminal no Estado Constitucional: reflexões sobre um novo paradigma
investigatório”, Pedro Ivo de Sousa oferece relevantes contribuições
sobre o tema. O estudo foca na relação entre investigação criminal e
Estado Constitucional, com a identificação de um novo paradigma da
atividade investigativa no Brasil, capaz de respeitar uma natural tensão
existente entre direitos humanos, eficiência e democracia, tendo como
pano de fundo uma perspectiva do garantismo integral.
A partir de críticas direcionadas ao
paradigma indiciário e ao paradigma inquisitório, modelos de
investigação já superados no Brasil, Pedro Ivo de Sousa (2015, p. 48)
defende que a Constituição Federal de 1988 instituiu o modelo de
investigação garantista:
Neste novo modelo brasileiro, há uma
tentativa de ampliação quantitativa e qualitativa da participação
popular nas decisões públicas, por meio de vários instrumentos e
garantias, que lhe conferem papel de destaque, de forma a conferir maior
legitimidade às ações do Estado.
(…)
A questão, por outro lado, é que esta abertura democrático-interpretativa, especialmente no âmbito do Estado Democrático de Direito brasileiro,
tem criado uma verdadeira confusão no nosso sistema jurídico, fruto,
salvo engano, de alguns equívocos teóricos e práticos, que envolvem a
própria coexistência do constitucionalismo e da democracia.
O equilíbrio necessário entre estes
dois grandes pilares do Estado Constitucional brasileiro precisa ser
estabelecido com foco na razão de suas existências, evitando, assim, o
colapso sistêmico, que lhe retira a integridade, a sistematização, a
coerência lógica e a justiça.
Essa proposta, no entender do
supramencionado autor, é também uma crítica ao atual modelo de
investigação criminal, o qual tem deixado de focar sua atenção na
eficiente elucidação dos fatos criminais ao conferir relevância
desproporcional à tutela dos direitos fundamentais. É a partir desse
pensamento que Pedro Ivo de Sousa (2015, P 63 E 64) faz a seguinte
ponderação:
Neste sentido, ainda que se concorde
com a construção teórica apresentada por Zanotti da afirmação do
direito subjetivo do investigado de ser ouvido durante o inquérito
policial, não se entende como cabível a defesa do efeito por ele
proposto de obrigatoriedade quase que absoluta de oitiva do investigado,
com base no art. 6º, inciso V, do CPP, querendo tornar nula uma
investigação que deixasse de ouvir o investigado, salvo nas condições
por ele propostas.
(…)
Além disto, ao que tudo indica,
também merece melhor análise a afirmação do autor de que a
obrigatoriedade da oitiva do investigado decorreria de uma leitura
textual do art. 6º, inciso V, do CPP, que, na sua visão, somente poderia
ser dispensada no curso do inquérito policial se ele estiver foragido
ou em local desconhecido pela Polícia Judiciária.
Por fim, o autor (2015, p. 65) apresenta a seguinte proposta:
É possível, assim, defender a
inexistência teórica e prática do dever da Autoridade Policial de oitiva
do investigado, ainda que realizável, toda vez que se demonstrar
desnecessária para a finalidade da investigação, já que fugiria ao
propósito maior desta atividade.
Entretanto, o que se entende por
incabível, por outro lado, é a possibilidade de que, ainda que se
demonstre aparentemente desnecessário, a Autoridade Policial se negue a
ouvir o investigado quando ele próprio demonstre ter interesse no
exercício do seu direito de ser ouvido.
De fato, Pedro Ivo de Sousa contribui
com várias propostas para o crescimento da investigação criminal. Antes
de analisar a proposta, faz-se necessário diferenciar, de um lado, a
obrigatoriedade da intimação do investigado pelo Delegado de Polícia e,
por outro lado, a faculdade deste investigado em se submeter ao
interrogatório.
A posição defendida nesta obra não tem
por finalidade garantir uma “cega” obrigatoriedade na intimação do
investigado, mas, tão-somente, superar o senso comum de que esse ato é
uma questão discricionária da Autoridade Policial. Até porque, existem
certas situações, por exemplo, quando o investigado está no estrangeiro,
em lugar desconhecido, foragido ou mesmo em coma hospitalar, nas quais a
sua intimação pode não acontecer. Contudo, essa dispensabilidade não é
algo que está à disposição do Delegado de Polícia e são as
circunstâncias fáticas do caso concreto que determinarão a melhor forma
de dar seguimento à investigação criminal, a qual pode ser concluída em
situações excepcionalíssimas sem a intimação do investigado.
Apesar dessa “obrigatoriedade regrada”
do Delegado de Polícia em proceder à intimação do investigado, a oitiva
na Delegacia de Polícia consiste em uma faculdade que está à disposição
da defesa e que somente ocorrerá com a respectiva concordância. Sobre o
tema, como se observou acima, Pedro Ivo de Souza defende a inexistência
teórica e prática do dever da Autoridade Policial de oitiva do
investigado, ainda que realizável, toda vez que se demonstrar
desnecessária para a finalidade da investigação. A fim de concretizar no
plano prático a sua posição, o autor entende, ainda, que a não
manifestação do investigado no prazo estabelecido pela intimação
consiste em exercício da sua vontade democrática e, enquanto não for
necessária para o esclarecimento dos fatos que envolvem a investigação, a
autoridade policial, desde que devidamente motivada, pode concluir o
inquérito sem a oitiva do investigado.
De fato, a não manifestação do
investigado após regular intimação consiste em exercício da sua vontade
democrática. Não obstante, o poder de condução coercitiva do Delegado de
Polícia lhe concede a prerrogativa de exigir a presença do investigado
na Delegacia de Polícia, mesmo que ele se negue em comparecer e/ou em
ser ouvido. Faz-se necessário encontrar o equilíbrio entre os direitos
fundamentais do investigado e as atribuições da Autoridade Policial como
consequência do equilíbrio entre constitucionalismo e democracia.
No dia a dia da atividade policial, não é
raro um interrogatório supostamente infrutífero tornar-se de grande
relevância ou uma condução coercitiva resultar no compartilhamento de
dados importantes, seja porque na Delegacia de Polícia e diante das
provas apresentadas o investigado decidiu colaborar, seja porque a sua
oitiva agregou algum tipo de informação que não era de conhecimento do
Delegado de Polícia, seja porque o investigado fez menções a outras
pessoas, documentos ou objetos que até então eram desconhecidos da
investigação. Em outras palavras, a utilidade da presença do investigado
na Delegacia ou de sua oitiva pelo Delegado de Polícia somente devem
ser analisada após a sua respectiva realização e, em especial, com o seu
confronto com todas as provas documentadas no curso do inquérito
policial.
É por isso que cabe à Autoridade
Policial promover a intimação do investigado e/ou a sua condução
coercitiva à Delegacia de Polícia, mesmo quando a sua oitiva
supostamente se mostrar desnecessária, a fim de que seja dada ao
investigado a possibilidade de contribuir para a investigação criminal e
influenciar a decisão final do Delegado de Polícia.
Sobre o tema da condução coercitiva,
cabe um questionamento final: É possível a condução coercitiva do
investigado ou testemunha sem intimação prévia?
No curso do inquérito policial, o
indiciado, o investigado e as testemunhas são intimados para
comparecerem à Delegacia de Polícia e prestarem esclarecimentos sobre o
fato. O não comparecimento à data marcada, além de incidir no crime de
desobediência (caso haja essa previsão no mandado de intimação), também
autoriza a condução coercitiva da pessoa à Delegacia de Polícia. De
acordo com o art. 260 do CPP, se o acusado não atender à intimação para
o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele,
não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua
presença. Acontece que o art. 260 do CPP, regra em sua essência, deve
trazer em si um valor a fim de nortear a sua aplicação no caso concreto:
A diferença é que sempre há uma
ligação entre regra e princípio. Não fosse assim e não se poderia
afirmar que atrás de cada regra há um princípio instituidor. Esse
princípio, que denomino “instituidor”, na verdade, constitui o sentido
da regra na situação hermenêutica gestada pelo Estado Democrático de
Direito. Essa é a especificidade; não é um princípio geral do direito,
um princípio bíblico, um princípio (meramente) político. No fundo,
quando se diz que entre regra e princípio há (apenas) uma diferença
(ontológica, no sentido da fenomenologia hermenêutica), é porque regra e
princípio se dão, isto é, acontecem no interior do círculo
hermenêutico. O sentido de um depende do outro, a partir desse
engendramento significativo. (STRECK, 2014, 78-79)
Por isso, quando o valor que a
determinação legal pretende preservar acaba por violar outros direitos
fundamentais, outra deve ser a análise no caso concerto. Claro, só
aprofundar nesse tema já demandaria um artigo por si só e foge do tema
aqui tratado.
Contudo, é importante ressaltar que,
comprovada a necessidade e urgência da condução coercitiva, esse
instrumento pode ser utilizado independentemente de um prévio mandado de
intimação. Por exemplo, na hipótese de uma testemunha ser ouvida no
último prazo da prisão temporária, após ela já ter sido prorrogada,
fazer referência a uma testemunha ocular do fato e essencial para a
elucidação dos fatos, a condução coercitiva figura-se como instrumento
importante ao caso narrado, a fim de não se prolongar ainda mais a
investigação criminal. Outros exemplos podem ser tratados, até mais
condizentes com a excepcionalidade da medida, dentro da riqueza que
somente o caso concreto pode fornecer.
Por fim, registra-se que a utilização da
condução coercitiva sem prévio mandado de intimação constitui medida de
exceção, devendo ser fundamentada pelo Delegado de Polícia a partir de
uma motivação que guarde coerência e integridade com o ordenamento
jurídico vigente.
Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos
REFERÊNCIAS:
SOUSA, Pedro Ivo de. Investigação
Criminal no Estado Constitucional: reflexões sobre um novo paradigma
investigatório. In: ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías
(Coords.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. Bahia: Juspodivm,
2015.
STRECK, Lenio. Lições de crítica hermenêutica do direito. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2014.
TAVARES, André Ramos. Democracia deliberativa: elementos, aplicações e
implicações. Revista Brasileira de Direitos Constitucionais. RBEC: Belo
Horizonte, ano 1, nº 1, jan. 2007. Disponível em:
<http://en.scientificcommons.org/55925692 >. Acesso em: 5 jun.
2012.
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