Em um momento primeiro, mais precisamente no final do século XIX e
início do século XX, na tentativa de construir um conceito analítico de
crime, surgiu a teoria causal naturalista de Von Lizst, que entendia ser
o crime uma ação voluntária, que causava ou tinha possibilidade de
causar, uma modificação do mundo exterior; nesse momento histórico, o
dolo e a culpa, ao lado da imputabilidade, integravam o terreno da
culpabilidade.
Por volta do ano de 1930, foi desenvolvida a teoria do finalismo, cujo
principal precursor foi Hans Welzel. Welzel, notou que a teoria causal
naturalista, confundia conduta com ação, não se apercebendo que a
conduta é o gênero, da qual são espécies a ação (facere) e a omissão
(non facere). Welzel observou ainda, que o dolo e a culpa, não integram a
culpabilidade, mas sim o próprio fato típico. Destarte, ficou assentado
que toda conduta é dirigida a certa finalidade.
É neste mesmo período de migração do dolo e da culpa da culpabilidade
para o fato típico, que a culpabilidade passou a conter tão somente
elementos normativos, daí o advento da teoria normativo-pura, passando a
representar um pressuposto para a aplicação da pena, um juízo de
reprovabilidade que recai sobre a conduta do agente, e não mais
requisito ou elemento do crime. A potencial consciência da ilicitude
ganhou espaço autônomo e passou a integrar, juntamente com
imputabilidade e a exigibilidade de conduta diversa os únicos requisitos
da culpabilidade, os quais permanecem intactos até os dias atuais.
Em um estágio mais avançado, surgem pensadores, em sua maioria, jus
filósofos, que se preocupam não em dar um conceito para o crime, mas sim
em dar explicações acerca das funções, da missão, do fim último do
Direito Penal, o que justifica a nomenclatura: “funcionalismo”.
Em meio a tal quadro, emerge o funcionalismo teleológico ou moderado de
Claus Roxin, o qual, deixando de lado o formalismo exagerado, enxerga o
delito de ângulo diverso, entendendo não ser crime por exemplo, os
delitos de bagatela, por faltar nestes casos tipicidade material, haja
vista que na prática, não se tem como violado o bem jurídico tutelado
pela norma penal, a qual deve ser orientada pelos princípios da
subsidiariedade e da fragmentariedade. Roxin defende ainda, a
reintrodução da teoria da imputação objetiva em nosso ordenamento
jurídico, a qual imputa ou não responsabilidade penal ao indivíduo,
tendo em conta os riscos permissivos ou não pelo corpo social.
Portanto, para Roxin, a função precípua da norma penal é a tutela dos
bens jurídicos principais ou mais importantes em determinado momento
histórico, e ao fazer a eleição destes últimos, necessária a observância
pelo legislador e posteriormente pelo interprete da norma penal, de
princípios como o da intervenção mínima, da fragmentariedade e da
subsidiariedade.
Numa visão diametralmente oposta à de Roxin, surge o funcionalismo
sistêmico ou radical do professor alemão Gunter Jakobs. Jakobs
preleciona que, a função última do direito penal é a tutela do conjunto
de normas em vigor em determinada sociedade, e somente por via indireta
há a tutela de bens jurídicos. Têm-se como premissa basilar a teoria do
contrato social, criada por Rousseau, e apoiada por Look e Hobbes, e
sugere medidas extremas para quem insistir em quebrar o pacto social,
tratando tal indivíduo como um verdadeiro inimigo. Jakobs ampara-se
ainda, nas teorias de Luman e de filósofos como Kant.
Existem ainda o funcionalismo do controle social de Hassemer (que se
ampara na tese do garantismo penal - Luigi Ferrajoli), e o funcionalismo
reducionista de Zaffaroni (que reestrutura os elementos do crime,
principalmente, no que tange a tipicidade – requisito do fato típico
desde 1906 com Bindig – instituindo a famigerada teoria da tipicidade
conglobante). Entretanto, para os objetivos a que se propõe este humilde
trabalho, limitamo-nos às ideias traçadas alhures acerca do
funcionalismo racional ou moderado de Roxin, e com o radical de Jakobs.
Explanada ao que interessa as teses funcionalistas do delito,
adentremos em minúcia ao estudo do direito penal do inimigo, como
proposto no inicio da obra.
Desde 1985 já se faziam referências à expressão “direito penal do
inimigo”. Todavia, somente em 2003 é que o uso da expressão se consagrou
no universo jurídico, ano em que Jakobs lançou sua obra intitulada
“Direito Penal do Inimigo”, trazendo um discurso afirmativo e
legitimador acerca de uma posição radical à favor do chamado Direito
Penal do Inimigo. Abre-se aqui um parêntese para a questão do nome dado
por Jakobs, à teoria. Entendemos que deveria se chamar Direito Penal
Contra o Inimigo.
Para Jakobs, existe um Direito Penal do Cidadão, baseado em uma
política criminal pautada em todas as garantias individuais (nullum
crimem nulla poena sine lege v.g.). Em um outro extremo, existe também,
segundo a concepção de Jakobs, um Direito Penal do Inimigo, esse um
Direito Penal que reduz drasticamente as garantias individuais dos
cidadãos, que pune atos meramente preparatórios, que usa (e abusa) das
leis penais em branco e ainda dos tipos penais abertos, que inobserva
princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato e
da imputação objetiva, dentre inúmeras outras formas redutoras dos
corolários da liberdade individual.
A diferença entre o delinquente chamado “cidadão” e o delinquente
“inimigo”, reside principalmente na intenção. O delinquente “inimigo”
segundo Jakobs, tem por objetivo quebrar o pacto social. O Estado, como o
maior interessado na manutenção da ordem e da norma, deve tomar medidas
enérgicas (verdadeiras medidas de guerra) contra o “inimigo”, que é
aquele que quebra, ou tenta quebrar reiteras vezes o pacto social, e por
conseguinte a convivência em sociedade. Já o delinquente denominado
“cidadão” é o chamado criminoso ocasional, que uma vez ou outra,
infringe a norma penal, sem contudo, voltar-se de forma direta contra o
Estado.
Pede-se licença ao leitor para trazer a tona a seguinte indagação: No
Brasil, existe alguma construção normativa exarando características do
chamado direito penal do inimigo? A resposta é afirmativa. Tomemos como
exemplo a lei de abate, que permite à Força Aérea Brasileira (FAB),
mediante autorização do Presidente da República, destruir em pleno voo
aeronave de que se suspeita transportar drogas. Note-se que in casu,
ocorre a extinção de um suposto inimigo, isso à revelia do judiciário e
com desrespeito a garantia do devido processo legal, pois que ocorre ali
a destruição sumária da aeronave, e de quebra, a violação ao princípio
da não culpabilidade.
Cumpre asseverar, que as criações legislativas com características do
direito penal do inimigo derivam, em sua grande maioria, do afobamento
do legislador, que, ante o clamor público por determinada providência,
busca dar à população, enxergada simplesmente como eleitores, uma
resposta imediata, dando-se ao fim e ao cabo, a impressão de que se está
fazendo o uso adequado e racional do poder legiferante.
Exemplificativamente, podemos citar a medida enérgica tomada pelo
Estado com a edição da Lei n. 10.826/03 (estatuto do desarmamento), que
tornou os crimes de porte e disparo de arma de fogo inafiançáveis. A
curto prazo (até o julgamento da ADI n. 3.112-1 pelo STF, que declarou a
inconstitucionalidade de tais disposições), teve o povo, a sensação de
que se confeccionam “boas” leis neste país. Do mesmo modo ocorreu com a
proibição de liberdade provisória nos crimes de tráfico de drogas (art.
44 da Lei 11.343/06 e Res. n. 05/2012 do Senado Federal).
De se alertar ainda, que ante os recentes clamores públicos com
repercussão nacional, originados dos movimentos “passe livre” e “vem pra
rua”, medidas enérgicas totalmente desarrazoadas podem ser tomadas por
nossos representantes, o que representa uma séria crise institucional,
tendo em vista a colisão entre a vontade popular e o meio escolhido ao
atendimento desta, o qual pode, eventualmente, não estar em consonância
com os objetivos traçados pela atual Constituição Federal. O alerta é
feito diante das discussões já existentes no Congresso Nacional sobre a
inclusão dos crimes de corrupção como hediondos, o que caso seja
concretizado, romperá com a tradição histórica de somente serem
incluídos no rol taxativo da Lei n. 8.072/90, crimes cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa.
Em continuidade e a título de arremate, o Direito Penal do Inimigo pune
o delinquente não pelo que ele fez, mas sim por quem ele é, ou mesmo
pelo que ainda poderá fazer, ostentando, no último caso, características
de um direito penal prospectivo. É sem dúvida a mais visível
representação do direito penal do autor, que deve ser repugnado em um
estado democrático de direito, que deve punir o agente pelo que ele fez
(direito penal do fato) e não por quem ele é. Deve então a tese do
Direito Penal do Inimigo se rechaçada e, segundo cremos, a melhor forma
de se fazer, é apegando-se à teoria do Garantismo Penal, de criação do
Jus Filosofo Luigi Ferrajoli.
Vejamos daqui em diante, o que são as velocidades do direito penal,
para após, irmos nos dirigindo para a fase final de nossa proposta, que é
situar o direito penal do inimigo, em uma das velocidades a seguir
expostas.
Podemos entender o tema velocidades do direito penal, como etapas do
direito penal, como os momentos vividos e os objetivos perquiridos pelo
direito penal ao longo de sua existência. É uma tese criada pelo
professor José Maria Silva Sanches.
Inicialmente, no chamado direito penal clássico, que é o Direito penal
de primeira velocidade, é possível concluir através de estudos
históricos, que o Estado velava pela imposição de pena privativa de
liberdade e, concomitantemente, pelas garantias e liberdades do
indivíduo. Garantias como, as do devido processo legal, do princípio da
presunção de inocência ou da não culpabilidade etc.
Nota-se então, que o Direito Penal de primeira velocidade é marcado
pela aplicação de pena privativa de liberdade, mas de outro lado,
respeita as garantias individuais.
Já o direito penal de segunda velocidade tem por escopo, nos casos de
crimes de menor gravidade, a aplicação de pena não privativa de
liberdade (as chamadas penas restritivas de direito), e ao mesmo tempo, a
flexibilização das garantias. Cite-se como exemplo a lei 9.099/95 que
instituiu os Juizados Especiais Criminais, e cria, em seu art. 76, o
benefício despenalizador denominado transação penal, que ao permitir a
aplicação sumária de pena não privativa de liberdade, preenche os
requisitos do direito penal de segunda velocidade, ou seja, aplica-se
pena não privativa de liberdade mas, por outro lado, relativiza-se a
garantia fundamental da presunção de inocência.
O Direito Penal de terceira velocidade, não há outra forma de se dizer,
é o mais terrível. Representa na prática, a junção do que há de pior no
direito penal de primeira e segunda velocidades. Defende-se aqui, a
aplicação de pena privativa de liberdade e, simultaneamente, a redução
das garantias.
E é neste campo que se concentra a pedra de toque de toda essa
explanação, pois que, é no Direito Penal de terceira velocidade que se
encontra inserido o chamado Direito Penal do Inimigo.
Fala-se ainda, em um Direito Penal de quarta velocidade que,
advirta-se, não é criação do professor Silva Sanches. Diz-se tão somente
que nasceu na Itália. Essa quarta velocidade, examina o tratamento
diferenciado conferido a quem é, ou a quem um dia já foi Chefe de
Estado. Está intimamente ligado com o Direito Internacional Penal, que
não se confunde com o Direito Penal Internacional (regras de
extraterritorialidade). No Brasil, atentemo-nos para a EC-45/2004
(reforma do judiciário) que acrescentou o parágrafo 4º ao art. 5º da
CF/88, dispondo que o Brasil se submete a jurisdição de tribunal
internacional, ao qual tenha manifestado adesão. Atualmente a questão
concentra-se no Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia, na
Holanda, e com jurisdição subsidiária.
Por todo o exposto, conclui-se que a tese radical do direito penal do
inimigo vai de encontro com o direito penal moderno, que é um direito
penal lastreado no fato praticado pelo autor, no desvalor da conduta e
não exclusivamente na personalidade no agente, sendo a construção
teórica capitaneada por Jakobs, a qual encontra-se infectada por ideais
nazistas, “um não direito” como colocado por Luiz Flávio Gomes1,
uma contradição em um Estado que se autointitula democrático de
direito, o qual, por esta razão mesma, deve velar ao máximo pelas
garantias dos cidadãos, e não reduzi-las. Por esses, e por uma série de
motivos outros que aqui nem se ousa enumerar, deve o Direito Penal do
Inimigo, bem como qualquer outra “solução” de política criminal com as
características do direito penal de terceira velocidade supraestudadas,
serem rechaçados, e segundo cremos, o antídoto é a teoria do Garantismo
Penal.
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